domingo, 8 de maio de 2011

Mistérios de Piracicaba -5-

O Beija-flor


(continuidade da Loca de Pedra)




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Era por uma destas noites horríveis de Piracicaba, em que o despenhar das aguas no Salto tem um gemido cavernoso e trágico; em que o trilar dos apitos da guarda noturna, de quarto em quarto d'hora, é como um pio de coruja agourenta, pavoroso e lúgubre; em que o assobio do vento sul nas frinchas e desvãos da «loca de pedra» é sinistro e tétrico; em que o ar pesado, na atmosfera funérea tem um cheiro esquisito de sangue coagulado e frio.




Era a hora em que no alto dos postes dispersos, as lâmpadas da iluminação publica parecem tremer de medo das trevas envolventes e os densos bulcões de nuvens viajam no espaço fuliginoso e negro como a asa fatídica de um corvo crocitante e negro. Solitário e ébrio, pela solidão da rua do Salto, ia descendo pávido e cambaleante o vulto negro do Salustiano Claudino, um ex-palhaço de circo de cavalinhos que a falência da companhia e os embates de uma sorte madrasta haviam largado nesta cidade e aqui vivia, temperando panelas como cozinheiro medíocre e divertindo a noite, com os seus ditos alegres, a Mariquinha «tostão», a Maria «porcadeiro» e as outras flores da «loca de pedra» famigerada.










Era engraçado e meigo o Salustiano Claudino e quanto mais bebia mais alegre e brandamente sorria, conciliador o pacífico, nunca se enredando em brigas, desmanchando muitas vezes era gargalhadas sonoras, com alguma chalaça bem dita, o furor truculento do «Chico limeirense» e do «Zé Caveira», prestes a se esfaquearem.





Quanta vez os seus esgares de palhaço aposentado não fizeram a Emília rebolar e tremer, naquele seu riso casquinado e retumbante, que enchia e atufava os ecos soturnos da «loca»! A Emilia «trem de carga» — assim apelidada porque em bebedeiras contínuas, xingando os outros se descompondo toda, resistia à prisão, tombando em cada esquina, como um trem de carga que para de estação em estação, sendo precisos os braços de quase o destacamento inteiro, para a transportarem de rastos até o xadrez distante!




E porque o Salustiano era brando assim e avesso a brigas a desordens, as moradoras da «loca» o queriam muito e por consenso unânime das divas e mancebos daquele cortiço lhe ficou o apelido mimoso — Salustiano Claudino, o «beija flor».




Descia pois o Salustiano «beija flor» a rua do Salto quando lobrigou na esquina da rua Luiz de Queiroz e nas trevas fúnebres da noite o pingo rubro de um cigarro fumegante, ali, bem junto à mole de granito das vastas construções, de onde surgira mais tarde a «loca de pedra»; cigarro tão fumegante, no negrume vasto da noite e em plena esquina, só algum guarda noturno naquela hora tardia poderia chupá-lo e o «beija-flor» medroso, já se dispunha a galgar a mole de pedra e ganhar o seu quarto na «loca», varando pelo quintal em declive, quando estacou no passeio, estarrecido e pávido ...






Um ruído insólito, o tac-tec nervoso do um tacão de sapatinho Luiz XV, acalcanhado, ressoava ligeiro no passeio e o «beija-flor» arrepiado viu passar ao seu lado um vulto feminino de saias roçagantes e dilatou-lhe as ventas numa delicia consoladora, aquele perfume procuradíssimo nos baús dos mascates turcos — o «korylopis» do Japão.


E entre o pingo rubro do cigarro fumegante e o tacão do sapatinho Luiz XV acalcanhado, os únicos seres perceptíveis na escuridão opaca da noite tenebrosa, ao lado do «beija-flor» cozido ao muro da esquina, travou-se este dialogo:

—- É você, «Isaias»?




—Sou eu mesmo, «Libania»; faz tempinho que estou pregado aqui na esquina, a sua espera, para lhe dizer um sentimento que tenho aqui no peito...




— Será do pulmão? —Não Libania Rita, é do coração, mas não é doença; é pior do que doença, porque é ciúme e desde que eu vi você andar em derriço com o Salustiauo, andou querendo lhe dizer duas palavrinhas, porque... ou bem eu, ou bem ele...




—Alin!... mas eu tenho medo de prosear aqui na esquina e meu quarto, na «loca», está escuro que nem breu, não tenho querosene na candeia, nem fósforo para alumiar a estrada.




O «beija-flor» não quis ouvir resto do dialogo; alma generosa e mão aberta para todos os sofrimentos, não pode tolerar que a Libânia Rita sofresse por falta de luz — a Libania que tanto se divertia com as suas pilhérias inofensivas — e o «beija-flor» galgou o muro e correu pelo quintal até o seu quarto, enquanto pela rua o José Isaias seguia ao longo do quarteirão, fazendo tilintar no bolso da calça os últimos níqueis, e ia comprar uma vela de espermacete e uma caixa de fósforos marca olho, na venda do José Toretti.








Sereno e majestoso, qual a estátua gigantesca estátua da liberdade iluminando o porto de Nova York, assim o «beija flor» postou-se ante a porta do cubículo de Libania Rita e soerguia na mão canhota uma lamparina de pavio aceso, quando o José Isaias defrontou com ele.




Um clarão de ódio faiscou nos olhos vermelhos do Isaias, o ciúme incontido resumou de sua boca, numa intimação feroz:




—Arreda dai, Salustiano.




Mas o «beíja flor» não viu o clarão de ódio, nem reparou na fisionomia transtornada do companheiro da Libania, que presenciava o drama e replicou por chalaça, com uma voz aflautada, como no circo de cavalinhos:




—Aqui hoje nós se despedaça, mas eu não saio.




O José Isaias circunvagou em torvo olhar de assassino e viu junto a parede um pau comprido e grosso, a escora talvez da alguma porta; ergueu-o rápido e fulminante, com as mãos ambas e uma pancada única abalou o eco da «loca», como um estilhaçar de vidro de janela, uma vibração sonora de tigela rachada.





Caindo de borco, o crânio espatifado, um liquido sanguinolento e espumoso a escorrer-lhe pela boca ao clarão fumarento da lamparina que tombara, Salustiano Claudino «Beija flor» entrou em agonia.



E morreu...






HUGO CAPETO





Glossário








Trilar: soltar a voz, trinar
Despenhar: cair de grande altura
Lúgubre: que evoca a morte
Frinchas: fenda, fresta
Desvão: espaço que fica entre o forro e o telhado
Bulcão: aglomeração de nimbos, indício e causa de tempestade
Crocitar: gritar como um corvo
Pávido: tomado de pavor
Chalaça: dito ou feito espirituoso, zombeteiro, escárnio
Esgar: jeito, careta de escárnio
Atufar: fazer crescer, tornar inchado
Lobrigar: enxergar com dificuldade na escuridão
Tacão: salto do calçado
Roçagante: que se roçaga, que se arrasta
Derriço: encontro, conversação, namoro

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