segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Mistérios de Piracicaba -4-

INGRATIDÃO DE ESCRAVA



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Em um dos primeiros dias do ano, à hora inclemente do sol a pino, fomos encontrar no “Asilo” uma pobre negra envelhecida, decrépita, quase à beira do túmulo em que fatalmente cairá ao sopro gélido da morte.

Naquele cérebro cansado os pensamentos se confundem, embaralham-se as idéias e em seus lábios trêmulos, apenas adejam monossílabos imperceptíveis, palavras vagas ou mesmo, às vezes, frases incompletas e desconexas.

Mas- coisa estranha- em certas horas, no silêncio tumular daquela casa, ecoa, suave e comovedor, um cântico melodioso, um doce hino todo repassado de ternura, ungido de um encanto celeste que enternece a alma e amaina o furor do coração –é mendiga que canta.


Sentada sobre o leito rude, a olhar pela janela o rio que ali embaixo desliza manso e sinuoso, a desvairada negra parece, num momento de lucidez, lembrar-se do seu passado e reporta-se então com o pensamento às horas felizes que suas orações e do culto fervoroso que lhe ensinaram a prestar ao Supremo Criador.

Enlevada num misticismo intenso, toda entregue às contemplações, vai entoando os salmos dos apóstolos os cânticos religiosos e as breves orações em louvor àquele que, na cruz ignominiosa, derramou o sangue inocente para a salvação da humanidade pecadora.

É um quadro tão simples, mas ao mesmo tempo tão significativo e belo, que o espectador de coração sensível sente-se comovido e não pode refrear o pensamento que voa por entre as névoas da cisma e das meditações.

Ali fora, no báratro medonho das agitações mundanas, rasteja a calúnia, explode o ódio, reina a hipocrisia, estorce-se o homem nas garras da perfídia e vasqueja nas ânsias convulsivas da paixão mesquinha.

Entretanto, na pobreza de um quarto abafado, uma criatura desconhecida, sem as comodidades dos salões nem o brilho das festas, espera resignadamente o alfanje implacável da Parca destruidora sem um queixume, sem um ai de desespero, antes abismada num róseo oceano de inefável ventura.

Ali tão perto, para além do rio que serpenteia murmuro, beirando a casa humilde dos pobres, há lágrimas amargas e ódios implacáveis; mas a velhinha ignora o rumorejar do mundo e o fervilhar das misérias da terra: canta, canta piamente, invocando a presença dos anjos níveos que lá do alto a protegem, ungida de sinceridade, impregnada de um suave misticismo comovedor.

E como é belo, como é sublime assistir a este espetáculo maravilhoso de uma pobre criatura caminhando para a sepultura a modular os hinos aprendidos na fase transitória da adolescência, enquanto a humanidade, pelas encruzilhadas da vida, perde-se no labirinto do pecado, chafurda-se no lodo do crime e tomba enfraquecida no atascal mefítico da hipocrisia e da calúnia.

E assim vinha pensando, de regresso daquele benemérito estabelecimento, em que a velhice exausta e a mendacidade reconhecida encontraram lenitivo para suas mágoas e bálsamo para suas dores, quando o meu companheiro de jornada, um velho piracicabano que fora dono da primeira casa de tijolos construída na antiga Rua da Quitanda, hoje 15 de Novembro, interrompeu o silêncio:

- Veja como são as coisas. Aquela negra velha, cuja atitude de santidade tanto comoveu seu coração, foi a escrava mais ingrata de que há memória.

-Aquela pobre doida?

-Doida ou não, o caso é que a presença da negra encanecida avivou em minha memória uma recordação dolorosa de um crime, em que se via de um lado a encarnação da ingratidão e de outro, a personificação da bondade.

Reportei-me a um passado distante, a uma noite de festa, em que o povo, alegre e satisfeito ouvia no jardim a velhas músicas da antiga Banda Stipp, enquanto em um lar, até então feliz, um honrado cavalheiro, pertencente a uma das mais distintas famílias de Piracicaba, era vítima do atentado mais hediondo, uma inominável ingratidão, originada em condenável cobiça.

-Esta negra decrépita, que hoje hinos enlevadores, com toda essa beatitude que comove os visitante do Asilo, foi a figura principal deste drama horrível e misterioso, que levou ao luto e a desolação ao seio de uma família honrada e boa, bem digna de melhor sorte.

-E o pior, meu caro amigo, o pior que é que o crime ficou impune. A mão criminosa, que tão certeira e perversamente agiu, roubando a uma esposa a solicitude com companheiro fiel das alegrias e dos dissabores da vida a três inocentes crianças as carícias consoladoras de um pai amoroso, não recebeu as merecidas algemas da punição.

-É uma história bem triste, que pouca gente conhece. Se quer conhecê-la, vá à noite ao clube e eu lhe contarei tudo.

À noite, não podendo resistir à curiosidade, fui ao clube e lá ouvi, comovido, a história da velha escrava. Em velha e espaçosa casa, já demolida, da antiga rua da Quitanda, residia com sua família , em janeiro de 18**, o coronel Camargo, sitiante de haveres e proprietário de algumas das melhores casas da cidade.

Filho de rico fazendeiro natural de Itu, homem operoso e de bom coração, tinha a bolsa sempre aberta para socorrer os necessitados que, conhecendo a filantropia proverbial que o caracterizava, não vacilam em lhe estender as mãos súplices, cada vez que se viam em dificuldades.

Vivia assim o velho piracicabano, cercado de estima e do respeito de quantos o conheciam, feliz no doce aconchego do lar que tão caro lhe era.

Um dia, em conseqüência talvez de uma corrente de ar, ao sair do Teatro Santo Estevam, onde fora assistir com a esposa solícita a uma representação da companhia Couto Rocha, apanhou um esfriamento e foi para a cama.

Em sua casa vivia, neste tempo, como criada de confiança, uma negra nonagenária, que fora escrava da família e que, por amizade ou gratidão pela alforria alcançada antes da lei de 13 de maio, não quisera abandonar o “sinhô moço”, que ela ajudara a criar.

Tal dedicação comovia a família Camargo, já acostumada a tratar da negra como pessoa de casa. O enfermo, que já se achava na convalescença e que se encontrava grato ao interesse que por saúde revelava a velha mucama, disse-lhe uma noite, ao receber de suas mãos uma chávena de chá:

-Não esqueço sua bondade, minha boa Filisbina, tanto que no meu testamento você é contemplada.
-Ora, Nhonhô...
- Sim, você sempre foi uma escrava serviçal, e agora me trata como se eu fosse seu filho.

- E a negra véia quer bem Nhonhô como fio memo.

-Por isso mesmo, se eu morrer, você receberá dez contos de réis, como recompensa de seus serviços e de sua dedicação para comigo.

-Ora, Nhonhô, não fale de murrê que isto dexa a gente triste... -Ninguém sabe o que está para acontecer e eu sou previdente, Filisbina. Mas como está delicioso este chá.

E entregando a chávena à velha mucama, o enfermo deitou-se de novo, puxou as cobertas até os ombros e daí a minutos ressonava.

Felisbina, que se sentara perto de leito, de vigília, enquanto a esposa do enfermo, fatigada, descansava no quarto próximo, começou a pensar, então, no que lhe dissera há pouco, o magnânimo patrão,

Dez contos de réis... Que fortuna para uma velha negra, que de seu nunca tivera mais de alguns tostões. Era verdade que nada lhe faltara ali, nem roupa, nem fumo nem pinga... Mas dez contos de réis... Que felicidade para uma pobre como ela...

Na noite seguinte o enfermo, que já se achava em convalescença. Piorava. Uma recaída? Alguma complicação? O médico debalde procurou a origem daquele agravamento da moléstia. Fizeram uma conferência médica. O dr. Tibério, o dr. Paulo Pinto e o dr. Possolo examinaram o enfermo com carinho e interesse, mas confessaram desolados, que não podiam desvendar o mistério daquele agravamento no estado do enfermo, cuja debilidade se acentuava de hora a hora.

A pobre esposa, com olhos lacrimejantes. Não poupava sacrifícios no solícito tratamento do amado companheiro de tantos anos. A ex-escrava, cada vez revelando maior dedicação, não abandonava o quarto do enfermo.

Uma noite, a esposa aflita e chorosa, contemplava, no quarto vizinho, o pobre enfermo, quando repentinamente observou que a velha Felisbina tirava do seio um pequeno embrulho e esvaziava o conteúdo num copo dágua.

Admirada, mal contendo a respiração, a infeliz senhora ficou como que pregada ao soalho. Daí a pouco o enfermo tosse e pede água. A negra, toda solícita, dá-lhe o copo dizendo:

- Beba, Nhonhô, que a água refresca a cabeça...

O enfermo pega o copo e vai levá-lo aos lábios, quando uma voz rouca e nervosa lhe chega aos ouvidos:

- Não beba! Não beba...

Ao mesmo tempo, quase cambaleando de comoção, avança a esposa, toma-lhe o copo das mãos trêmulas e diz fitando os olhos pávidos da velha mucama:

- Miserável!... Miserável assassina... Bem andava eu desconfiada deste monstro em figura da gente!... A negra, vendo-se desmascarada precisamente quando menos esperava, caiu de joelhos e arrastando-se até o leito em que o enfermo, mudo de espanto, acompanhava aquela triste cena com os olhos esbugalhados, suplicou-lhe em voz trêmula e chorosa:

-Perdão, sinhô moço... perdão... Ai, meu Deus do céu... Pensei que o Nhonhô morria mêmo e... ai sinhô moçõ... perdão...

Aquele barulho, no silêncio tétrico da noite, chamou a atenção dos serviçais que se achavam na cozinha e que correram ao quarto.

Posto a par do que se passava, agarraram a negra velha, enquanto um próprio sobrinho da criminosa, indignado com a inominável ingratidão gerada pela cobiça sórdida dos dez contos de réis, com que a mucama sonhara dia e noite, saiu à procura do alferes P......., que era neste tempo o delegado de policia.

A presença do alferes P..... e de sua ordenança infundiu maior terror à criminosa, que manietada, continuou a gemer: -Ai meu Deus do céu... Perdão, sinhô moço... perdão, sinhô... perdão pra mãe negra...

O pobre enfermo, com lágrima nos olhos, assistia a tudo com um silêncio quase inexplicável.

Afinal, quando o delegado, num gesto enérgico, mandou que sua ordenança levasse a criminosa para a cadeia, o cel Camargo levantou-se um pouco de leito, estendeu a dextra e disse com voz fraca:

-Deixem-na...

Todos olharam com espanto. E ele continuou:

-Ela foi minha ama... Era dedicada e boa... Depois... vejam como está arrependida”

O delegado relutou. Tais foram, porém as súplicas do enfermo, que não foi possível resistir. E, com o generoso perdão, foi a negra para a casa de uns parentes, onde voluntariamente se enclausurou.

Dois meses depois o cel Camargo, em conseqüência do vidro moído que lhe ministrara a velha mucama, em noites consecutivas, falecia, pedindo ainda, à hora suprema de expirar, que nada fizessem à sua velha ama, que ao receber a notícia fatal, chorava e ria ao mesmo tempo.

Estava louca a desgraçada ambiciosa criatura, que tão mal pagara os benefícios recebidos de seu magnânimo Sinhô moço...

Hugo Capeto


Apêndice Mucama: escrava ou criada negra, geralmente jovem, que vivia mais próxima dos senhores, ajudava nos serviços caseiros e acompanhava sua senhora em passeios. Manietar: amarrar as mãos, tolher os movimentos. Enlevado: em arroubos de encanto, maravilhado extasiado. Báratro: abismo, voragem, inferno. Vasquejar: ter convulsões,contorcer-se. Parca: ma mitologia clássica, cada uma das três deusas (Cloto, Láquesis e Átropos) que determinam o curso da vida humana, morte. Níveo: relativo à neve, branco. Chafurdar: espojar, evolver-se em, corromper-se. Atascal: lugar onde há lama, lamaçal. Mefítico: nocivo à saúde, tóxico, pestilento fétido. Mendacidade: característica de ser mentiroso, falso. Encanecer: branquear os cabelos gradativamente.

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